31 janeiro 2006

A força da moderação

Chateia-me quando o politicamente correcto impede a esquerda de saltar a terreiro no momento em que milhares de manifestantes (uns genuínos na sua indignação, outros claramente manipulados) e vários Governos (muitos deles, práticos na manipulação dos instintos da rua através da religião) se lançam a vociferar quando alguém no mundo ocidental ousa questionar os dogmas do Islão. Como é que se pode andar a doutrinar o Ocidente sobre a tolerância do mundo muçulmano e depois aceitar que os fanáticos religiosos tomem conta do discurso cada vez que alguém se permite usar os símbolos religiosos islâmicos?
Todas as religiões têm os seus fanáticos, gente incapaz de perceber que a tolerância é uma virtude e que os não-religiosos têm tanto direito de questionar os dogmas dos crentes, como estes possuem o direito de anatematizar os descrentes por não crerem num ente trascendental.
O problema está quando os crentes moderados, os tolerantes, aqueles que acreditam na liberdade de expressão, na liberdade de culto, no direito de cada um amar o seu deus, os seus deuses ou nenhum deus, não saltam a terreiro a vociferar contra os vociferantes que dão mau nome à religião.
É verdade que aceitar que alguém questione os nossos dogmas pode pôr em causa os alicerces da nossa fé, caso esta não esteja assente numa estrutura sólida de pensamento e apenas em noções vácuas, esqueletos perenes e mantras repetidos hipnoticamente.
A fatwa contra Salman Rushdie, a morte de Theo van Gogh e agora as caricaturas de Maomé publicadas pelo diário dinamarquês Jyllands-Posten são apenas exemplos de como a religião pode ser encurralada pelos fanáticos e pelos que a usam politicamente em seu proveito.
Esses mesmos fanáticos existem no Ocidente e existem em Israel e também eles pretendem encurralar os moderados e os não-crentes num canto para onde possam atirar as primeiras, as segundas e as terceiras pedras do alto da sua vida impoluta inventada e das suas crenças hipocritamente manipuladas em proveito próprio.
A diferença parece estar no facto de que as vozes moderadas ainda têm alguma força no Ocidente - até quando? -, o que permite contrabalançar os pratos da balança religiosa de forma a evitar a tomada do poder público por parte dos fanáticos.
Ora, se o politicamente correcto continuar a presidir a todas as afirmações públicas dos nossos governantes - um politicamente correcto que nada tem a ver com a liberdade de expressão, mas é a resposta amedrontada aos vociferantes insultos - então um dia iremos acordar com a língua amarrada e os dedos amarrados e os ouvidos congestionados e já nada poderemos fazer.
As vozes vociferantes são isso mesmo, vozes vociferantes, não têm razão porque gritam. Se pedimos desculpas, damos-lhes razão. E, então, para se ter razão, teremos de gritar. E se todos gritarmos, ninguém entenderá nada no meio da cacofonia.
A liberdade de expressão é um pau de dois bicos: tanto nos permite pensar o que queremos, como aos mais extremistas dos nossos conterrâneos lhes dá possibilidade de congeminar as mais nefastas ideias. Não me importo que me digam que estou errado, que nada do que eu penso é aproveitável, mas importo-me quando me dizem que me cale. O mesmo vale para um ortodoxo judeu gritando palavras de ordem contra os palestinianos, um imã radical diabolizando a vida ocidental ou um jornal dinamarquês publicando caricaturas de Maomé. Aceitar a liberdade de expressão não é fácil. Mas não tem de o ser.

P.S. Não vi as caricaturas (não foi porque não tivesse tentado), mas também isso não é relevante para o ponto de vista que defendo. Aliás, desconfio que grande parte dos que exigiram um pedido de desculpas do Governo dinamarquês também não as viram. A liberdade de expressão, como escrevi antes, nada tem a ver com o meu gosto pessoal.