Sobre os que avançam com a morte ao ombro
A propósito do 20º aniversário da morte do escritor Juan Rulfo recupero e adapto um texto escrito originalmente para o "Diário do Notícias" sobre um dos maiores escritores do século XX
Quando um livro de contos começa com uma preciosidade de cinco páginas chamada "Deram-nos a Terra", e logo aí justifica a sua existência como obra, quer dizer que a mão que lhe deu forma não brincava à literatura quando o escreveu. Poucos serão os escritores com obra tão breve como Juan Rulfo (um livro de contos, "A Planície em Chamas", mais a novela "Pedro Páramo" - ambos editados em Portugal recentemente pela Cavalo de Ferro - são toda a sua produção literária) capazes de o superar em influência e importância. Rulfo é para a literatura de língua espanhola o que William Faulkner é para a de língua inglesa.
Um instante de renovação que marca o futuro.
Rulfo não se interessava pela cidade, apesar de ter chegado à capital do México ainda cedo. O seu universo era o campo e a sua linguagem a popular. O que ele queria era «utilizar a linguagem do povo», essa que tinha ouvido dos mais velhos e «que continua viva até hoje».
Escrita seca e áspera como a terra por onde andam as suas personagens: mortos para ser ou mortos já.
A paisagem é cruel, inclemente, povoada por habitantes sem remorsos. Para contar as histórias, recorre-se muitas vezes à personagem que narra em monólogo à que se mantém como ouvinte. Um outro que somos nós. Tal como em "Pedro Páramo", onde um morto contava a história como se estivesse vivo sobre uma aldeia de fantasmas, de almas penadas, também nos contos Rulfo abdica do espaço e do tempo como coordenadas reais e coloca as suas personagens num tempo e geografia indefinidos. Que acabam e começam com cada conto; ou não começam, nem acabam, apenas ficam suspensas à espera do leitor.
Histórias de malparidos; de condenados; de foragidos; de seres humanos a quem nem o Sol dá uma ajuda. De gente que morre porque é mais fácil morrer; de vida que apenas é corrida desenfreada para o ataúde.
A paisagem aqui é marcada apenas pela terra dura e ingrata, sempre a exigir mais do que a dar. E pela água. Por inundações ou pela seca. Morrem vacas na enxurrada, mingua a ração e tornam-se fantasmas as aldeias pela falta de água e nós agarrados a essa narrativa escorreita, pele e osso, a ver morrer gente e a ouvir contar histórias de tristeza. «Não, o llano (planície seca) não é coisa que sirva. Não há aqui nem coelhos nem pássaros. Não há nada. A não ser umas quantas acácias raquíticas e uma ou outra manchinha de pasto com as folhas enroscadas; a não ser isso, não há nada.
Quando um livro de contos começa com uma preciosidade de cinco páginas chamada "Deram-nos a Terra", e logo aí justifica a sua existência como obra, quer dizer que a mão que lhe deu forma não brincava à literatura quando o escreveu. Poucos serão os escritores com obra tão breve como Juan Rulfo (um livro de contos, "A Planície em Chamas", mais a novela "Pedro Páramo" - ambos editados em Portugal recentemente pela Cavalo de Ferro - são toda a sua produção literária) capazes de o superar em influência e importância. Rulfo é para a literatura de língua espanhola o que William Faulkner é para a de língua inglesa.
Um instante de renovação que marca o futuro.
Rulfo não se interessava pela cidade, apesar de ter chegado à capital do México ainda cedo. O seu universo era o campo e a sua linguagem a popular. O que ele queria era «utilizar a linguagem do povo», essa que tinha ouvido dos mais velhos e «que continua viva até hoje».
Escrita seca e áspera como a terra por onde andam as suas personagens: mortos para ser ou mortos já.
A paisagem é cruel, inclemente, povoada por habitantes sem remorsos. Para contar as histórias, recorre-se muitas vezes à personagem que narra em monólogo à que se mantém como ouvinte. Um outro que somos nós. Tal como em "Pedro Páramo", onde um morto contava a história como se estivesse vivo sobre uma aldeia de fantasmas, de almas penadas, também nos contos Rulfo abdica do espaço e do tempo como coordenadas reais e coloca as suas personagens num tempo e geografia indefinidos. Que acabam e começam com cada conto; ou não começam, nem acabam, apenas ficam suspensas à espera do leitor.
Histórias de malparidos; de condenados; de foragidos; de seres humanos a quem nem o Sol dá uma ajuda. De gente que morre porque é mais fácil morrer; de vida que apenas é corrida desenfreada para o ataúde.
A paisagem aqui é marcada apenas pela terra dura e ingrata, sempre a exigir mais do que a dar. E pela água. Por inundações ou pela seca. Morrem vacas na enxurrada, mingua a ração e tornam-se fantasmas as aldeias pela falta de água e nós agarrados a essa narrativa escorreita, pele e osso, a ver morrer gente e a ouvir contar histórias de tristeza. «Não, o llano (planície seca) não é coisa que sirva. Não há aqui nem coelhos nem pássaros. Não há nada. A não ser umas quantas acácias raquíticas e uma ou outra manchinha de pasto com as folhas enroscadas; a não ser isso, não há nada.
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