28 abril 2006

Sobre os que avançam com a morte ao ombro

A propósito do 20º aniversário da morte do escritor Juan Rulfo recupero e adapto um texto escrito originalmente para o "Diário do Notícias" sobre um dos maiores escritores do século XX

Quando um livro de contos começa com uma preciosidade de cinco páginas chamada "Deram-nos a Terra", e logo aí justifica a sua existência como obra, quer dizer que a mão que lhe deu forma não brincava à literatura quando o escreveu. Poucos serão os escritores com obra tão breve como Juan Rulfo (um livro de contos, "A Planície em Chamas", mais a novela "Pedro Páramo" - ambos editados em Portugal recentemente pela Cavalo de Ferro - são toda a sua produção literária) capazes de o superar em influência e importância. Rulfo é para a literatura de língua espanhola o que William Faulkner é para a de língua inglesa.
Um instante de renovação que marca o futuro.
Rulfo não se interessava pela cidade, apesar de ter chegado à capital do México ainda cedo. O seu universo era o campo e a sua linguagem a popular. O que ele queria era «utilizar a linguagem do povo», essa que tinha ouvido dos mais velhos e «que continua viva até hoje».
Escrita seca e áspera como a terra por onde andam as suas personagens: mortos para ser ou mortos já.
A paisagem é cruel, inclemente, povoada por habitantes sem remorsos. Para contar as histórias, recorre-se muitas vezes à personagem que narra em monólogo à que se mantém como ouvinte. Um outro que somos nós. Tal como em "Pedro Páramo", onde um morto contava a história como se estivesse vivo sobre uma aldeia de fantasmas, de almas penadas, também nos contos Rulfo abdica do espaço e do tempo como coordenadas reais e coloca as suas personagens num tempo e geografia indefinidos. Que acabam e começam com cada conto; ou não começam, nem acabam, apenas ficam suspensas à espera do leitor.
Histórias de malparidos; de condenados; de foragidos; de seres humanos a quem nem o Sol dá uma ajuda. De gente que morre porque é mais fácil morrer; de vida que apenas é corrida desenfreada para o ataúde.
A paisagem aqui é marcada apenas pela terra dura e ingrata, sempre a exigir mais do que a dar. E pela água. Por inundações ou pela seca. Morrem vacas na enxurrada, mingua a ração e tornam-se fantasmas as aldeias pela falta de água e nós agarrados a essa narrativa escorreita, pele e osso, a ver morrer gente e a ouvir contar histórias de tristeza. «Não, o llano (planície seca) não é coisa que sirva. Não há aqui nem coelhos nem pássaros. Não há nada. A não ser umas quantas acácias raquíticas e uma ou outra manchinha de pasto com as folhas enroscadas; a não ser isso, não há nada.

24 abril 2006

Um espião insatisfeito com Bush


Não é que conte alguma coisa de novo, mas sempre é uma testemunha privilegiada a confirmar a história. Tyler Drumheller, ex-director da CIA na Europa, conta nesta entrevista ao programa "60 Minutes" da CBS que à administração norte-americana só lhe interessa a informação que sirva de base às decisões políticas já tomadas.

"Acho que daqui a algum tempo, as pessoas olharão para trás em relação a isto e verão que estamos perante, acho eu, um dos maiores erros políticos de todos os tempos."
Tyler Drumheller ex-director da CIA na Europa

21 abril 2006

EUA, o Estado-nação

De novo Slavoj Zizek.

"O problema com os Estados Unidos de hoje não é o de ser um império global, mas o de o não ser: por outras palavras, ao pretender sê-lo, continua a actuar como uma nação-Estado, na prossecução implacavel dos seus interesses."

De boas intenções está o inferno cheio

Ainda Slavoj Zizek no mesmo "Iraq: The Borrowed Kettle".

"A mensagem fundamental de filmes como A Desaparecida, de John Ford, e Taxi Driver, de Martin Scorsese, é hoje, com a ideologia ofensiva global americana, mais relevante do que nunca - somos testemunhas do ressurgimento da figura do americano tranquilo, o ingénuo e benevolente agente que sinceramente pretende levar a democracia e a liberdade Ocidental aos vietnamitas; só que as suas intenções falham redundamente, ou, como o definiu Graham Greene: Nunca conheci um homem que tivesse tão boas intenções ao provocar tantos problemas."

Ataques preventivos v Proliferação nuclear

O filósofo Slavoj Zizek escreve assim no seu livro "Iraq: The Borrowed Kettle".

"O último dos paradoxos é que a estratégia de ataques preventivos contribuirá para a proliferação de armas nucleares. Quando os Estados Unidos atacaram o Iraque e não a Coreia do Norte, o subentendido lógico era claro: assim que um Estado pária atinge o limite crítico e adquire armas nucleares substanciais, não se pode simplesmente atacá-lo porque ao fazê-lo arriscamos uma resposta que matará milhões do nosso lado. Esta é, precisamente, a lição que a Coreia do Norte retirou do ataque contra o Iraque: o regime olha para as armas nucleares como a única garantia de sobrevivência; na sua perspectiva, o erro do Iraque foi aceitar a colaboração com a ONU e a presença de inspectores internacionais."

20 abril 2006

O caso do "talibã chinês"

"Pode alguém ser muçulmano e também patrioticamente norte-americano? É a pergunta que me coloquei a outra noite, quando jantei com o capitão James Yee. Trata-se do primeiro militar norte-americano que contou a toda a gente o que verdadeiramente se passa dentro das celas e por trás das redes do centro de detenção que os Estados Unidos gerem em Guantánamo, Cuba: a tortura, a profanação do Alcorão, a hostilidade incessante que os interrogadores utilizam em relação ao Islão."

O escritor chileno Ariel Dorfman, professor nos Estados Unidos, escreve no "El País" sobre o ex-militar a quem os outros oficiais chamavam depreciativamente "talibã chinês". Pode aceder por aqui à totalidade da crónica em espanhol.

Bush e a História

Há quem já tenha chegado empiricamente à conclusão, a revista "Rolling Stone" tenta responder à pergunta com um pouco mais de substrato na comparação: será George W. Bush o pior Presidente que os Estados Unidos alguma vez tiveram?

Manuel Maria

Manuel Maria Carrilho tem o condão de reunir em si todas as piores qualidades que podem ter os políticos e os intelectuais, sem nenhuma das suas virtudes. A sua arrogância intelectual só é superada pela sua vaidade. Exemplo claro do narcísico, incapaz de respeitar a profissão para a qual um dia (em má hora) Guterres o foi buscar, o ex-ministro da Cultura há muito merecia um epitáfio político. Espero que perante a sua desastrada actuação na Câmara Municipal de Lisboa (que lhe valeu a manchete do "Público" de hoje e, seguramente, a raiva de 1600 trabalhadores municipais precários) a direcção do Partido Socialista tome as devidas providências e se esqueça dele para qualquer outra eleição vindoura. Até porque com Manuel Maria Carrilho o PS só tem uma garantia: a derrota. Manuel Maria só o Barbosa du Bocage.

18 abril 2006

Chernobyl e a guerra dos números

Cientistas russos minimizaram hoje oimpacto do acidente da central nuclear de Tchernobyl, apesar de passados 20 anos o número de cancros da tiróide continuar a aumentar na região, segundo a Cruz Vermelha Internacional.
"Em comparação com as radiações causadas por Tchernobyl, as outras consequências do acidente, como o stress psicológico crónico, a alteração das condições de vida, as perdas materiais, representaram para os habitantes um problema mais importante", disse em Moscovo o directo do Instituto dos Problemas de Desenvolvimento da Energia Atómica, Igor Lingué.
Durante uma conferência de imprensa, Lingué explicou que "em 60.000 pessoas, apenas 5.000 morreram em 20 anos" e "os indicadores de mortalidade dos 'liquidadores' (bombeiros, soldados e civis enviados a Tchernobyl para suster o incêndio do reactor) não ultrapassam os números referentes à população masculina russa".
A Cruz Vermelha Internacional lembrou hoje em Genebra que os estudos científicos vaticinam que o cancro da tiróide continuará a representar um grave problema de saúde pública nas regiões afectadas pelas explosões e posterior incêndio no reactor número quatro da central nuclear de Tchernobyl a 26 de Abril de 1986.
O 20º aniversário do acidente está a criar uma polémica em torno das consequências do desastre. As principais zonas atingidas pela nuvem de partículas radioactivas libertada pelo acidente ficam na Bielorrússia, Rússia e Ucrânia, embora a massa de ar tenha alcançado também a Ásia e uma parte da Europa.
Desde 1997, um programa especial da ONU de assistência às vítimas detectou 1.120 casos de cancro da tiróide, embora apenas dois casos tenham sido mortais.
Enquanto os números oficiais das Nações Unidas e da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam para um total de 4.000 mortos em consequência do desastre, várias organizações discordam e colocam o número de vítimas num patamar superior.
A organização ecologista Greenpeace divulgou hoje um relatório em que afirma que o desastre na central nuclear soviética causou cerca de 200.000 mortos na Ucrânia, Bielorrússia e Rússia.
Criticando a ONU por "minimizar conscientemente" as consequências da catástrofe, a Greenpeace apelida de "muito realista" um estudo publicado este ano pela Academia das Ciências russa, segundo o qual, desde Tchernobyl, se registaram nos referidos três países 270.000 casos suplementares de cancro - casos que só surgiram devido à catástrofe -, que se traduzirão, no total, numas 93.000 mortes.
A Sociedade Francesa de Energia Nuclear (SFEN), uma organização que agrupa 4.000 investigadores, engenheiros e médicos, a maior parte deles a trabalhar no sector nuclear, discorda da Greenpeace e subscreve os números adoptados pela ONU.
"Os dados compilados" pela OMS " constituem a soma mais completa jamais feita sobre as consequências do acidente", lê-se no relatório da associação francesa.
"As avaliações feitas depois do acidente (…) dando conta de 300.000, até de 500.000 mortos entre as populações (…) não assentam em nenhuma base credível e estão desprovidos de credibilidade", acrescenta a SFEN. Os dados da ONU mostram que sete milhões de pessoas ainda habitam nas áreas mais atingidas, onde os especialistas acreditam que os efeitos da radioactividade se sentirão durante mais alguns anos.

Texto do autor feito para a Agência Lusa

A vacina e a abstinência

A empresa farmacêutica Merck & Company descobriu uma vacina que protege as mulheres contra o vírus do papiloma humano (HPV), a mais comum das doenças sexualmente transmissíveis (mais de metade dos norte-americanos é afectado por ela em alguma altura da sua vida). O vírus é a causa principal do cancro cervical e a vacina tem, segundo os testes, um nível de êxito extremamente elevado. Para que a vacina seja eficaz, as raparigas devem ser inoculadas antes de se tornarem sexualmente activas.
O Governo dos Estados Unidos e o partido republicano opõem-se a que a vacina seja administrada a raparigas, porque tal vai contra os seus programas educativos que defendem a abstinência sexual. Para os conservadores norte-americanos, a presença do vírus do papiloma humano é uma espécie de exemplo de promiscuidade.
Ou seja, o Governo dos Estados Unidos prefere confiar nos milhões de dólares que canaliza para os seus programas educativos "abstinência antes do casamento" do que instituir a vacinação das crianças norte-americanas com uma vacina contra a causa primária do cancro cervical.
Isto apesar destes programas de abstinência serem tudo menos fiáveis no que diz respeito a conseguir atingir o seu principal objectivo: o de evitar que os jovens dos Estados Unidos mantenham relações sexuais antes do casamento.
Quanto às doenças sexualmente transmissíveis: um recente estudo conjunto das universidades de Columbia e de Yale, segundo a revista "New Yorker", dá conta que os estudantes de grupos abstinentes que acabam por ter relações sexuais antes do fim do estudo são tão contagiados como os pertencentes aos grupos promíscuos.
Mesmo assim, a Administração norte-americana prefere manter-se irredutível na sua perspectiva do mundo e não recomendar a vacina contra o vírus do papiloma humano.

17 abril 2006

Chernobyl na National Geographic


Uma das fotografias da reportagem sobre Chernobyl que se pode ler no número deste mês da National Geographic: Richard Stone (texto) e Gerd Ludwig (fotos) são os autores. Pode aceder à reportagem por aqui.

03 abril 2006

Sobre o fanatismo II

"Confesso que em criança, em Jerusalém, eu também era um pequeno fanático com o cérebro lavado. Com ares de superioridade, chauvinista, surdo e cego a qualquer discurso que fosse diferente do poderoso discurso judeu sionista da época. Eu era uma criança que lançava pedras, uma criança da «Intifada» judia. Na verdade, as primeiras palavras que aprendi a dizer em inglês, além do yes e do no, foram British Go Home!, que era o que nós, crianças judias, costumávamos gritar às patrulhas britânicas de Jerusalém enquanto as apedrejávamos. Talvez tenha chegado à altura de que toda a escola, toda a universidade, organize pelo menos um par de cursos de fanatismo comparado, uma vez que surge em todo o lado. Não me refiro apenas às manifestações óbvias de fundamentalismo e fervor cego. Não me refiro apenas aos fanáticos declarados, esses que vemos do outro lado do ecrã da televisão no meio de multidões histéricas que agitam os seus punhos contra as câmaras enquanto gritam slogans em línguas que não entendemos. Não, o fanatismo surge em todo o lado. Com maneiras mais silenciosas, mais civilizadas. Está presente à nossa volta e talvez mesmo dentro de nós próprios."

Amos Oz (Como curar um fanático?)

Sobre o fanatismo

"O fanatismo é mais velho do que o islão, do que o criastianismo, do que o judaísmo. Mais velho do que qualquer Estado, Governo ou sistema político. Mais velho do que qualquer ideologia ou credo do mundo. O fanatismo é uma componente sempre presente na natureza humana, um gene do mal. As pessoas que fizeram explodir clínicas onde se praticava o aborto nos Estados Unidos, os que queimam sinagogas e mesquitas na Alemanha, só se diferenciam de Ben Laden na magnitude, mas não na natureza dos seus crimes."

Amoz Oz ("Como curar um fanático?")

A história é escrita pelos vencedores

A imprensa britânica publica hoje, pela primeira vez, fotos das vítimas de um programa secreto de torturas desenvolvido pelas autoridades britânicas na Alemanha ocupada, no início da Guerra Fria.
Segundo o diário The Guardian, as fotografias mostram homens que foram submetidos a meses de fome, privação de sono, espancamentos e temperaturas extremas em alguns centros de interrogatório geridos pelo Ministério da Guerra britânico na Alemanha do pós-guerra.
Algumas das vítimas foram espancadas até à morte ou deixadas morrer à fome e outras torturadas com instrumentos encontrados nas prisões da Gestapo.
As vítimas eram sobretudo presumíveis comunistas detidos em 1946 por alegadamente apoiarem a União Soviética, dado que, segundo o jornal, as autoridades britânicas estavam convencidas na altura da iminência de uma guerra com os russos e tentavam, com as torturas, apurar os métodos militares e de informações dos russos.
Segundo o Guardian, os britânicos também torturaram dezenas de mulheres, assim como vários verdadeiros agentes soviéticos e responsáveis nazis.
As fotografias foram feitas em 1947 por um oficial da Marinha britânica que queria pressionar o Ministério da Guerra a pôr termo ao programa de torturas.
A sua divulgação, 60 anos depois, foi conseguida pelo Guardian ao abrigo da lei da liberdade de informação.
O porta-voz do Partido Liberal (oposição) para os assuntos militares, Nick Harvey, instou hoje o Ministério da Defesa a reconhecer os factos agora divulgados e a pedir desculpas públicas, embora "seja demasiado tarde para exigir responsabilidades concretas".
O Ministério da Defesa considerou todavia que o assunto compete ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.

in Lusa (fotos do The Guardian) para aceder ao texto do jornal britânico basta clicar aqui.